Por Leonardo Sarmento.
Questões que parecem sofrer de parcial carência cognitiva, pouco ou nada articuladas pelos estudiosos do direito, questões nebulosas, que atormentam o imaginário de boa parcela da sociedade, dos leigos aos profissionais do direito, e que por uma senda integrativa resolvemos enfrentá-las de maneira inteligível, antecipando-nos ao pronunciamento que se fará imperioso do Supremo Tribunal Federal, que de sorte nos trará a decisão final que regulará boa parte do complexo questionado no presente.
Um candidato à presidência da República, que seja réu em primeira instância, pode disputar pleito eleitoral e entrar em exercício caso eleito? E se restar condenado em 1ª instância? E para a hipótese de restar condenado também em 2ª instância? Alguma circunstância fática poderá torná-lo inelegível? Estas são algumas das perguntas que iremos responder tomando como exemplo a bradada candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – vulgo Lula. Ao final trataremos do ruído de uma PEC prevendo eleições diretas ainda para 2017.
Importante notar que utilizaremos do exemplo “Lula” que nos afigura a situação mais palatável de enfrentamento real, pois já é réu e parece estar em franca “campanha política”, mas por óbvio o exemplo não se esgota em “Lula”, podendo ser ampliado para qualquer candidato à Presidência da República que guarde situação análoga por ocasião do pleito presidencial.
Legislação aplicável:
A LC 64/90, que estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências, modificada pela lei da Ficha Limpa, LC 135/2010.
Assim, o art. 2º da LC 135/2019 alterou o art. 1º da LC 64/90, e no ponto que nos interessa:
Art. 1º São inelegíveis:I – para qualquer cargo:(…)e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010).1. Contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010);(…)6. De lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;10. Praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
Art. 2º Compete à Justiça Eleitoral conhecer e decidir as argüições de inelegibilidade.Parágrafo único. A argüição de inelegibilidade será feita perante:I – o Tribunal Superior Eleitoral, quando se tratar de candidato a Presidente ou Vice-Presidente da República;(…).
Art. 86 da CF: Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade(…)§ 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
Fundamentos e hermenêutica jurídica
Conforme a exposição legislativa pertinente que capitulamos, aplica-se a Lei da Ficha Limpa ao caso em tela. Por esta proíbem-se candidaturas de quem já fora condenado por jurisdição em órgão colegiado – 2ª instância. Assim, no caso de Lula, o ex-presidente teria que ser condenado na 1ª instância, e referida condenação restar reafirmada em 2ª instância, nestes termos uma primeira decisão colegiada.
Nesta senda ser réu nos termos da nossa legislação não configura fato impeditivo para a candidatura. O impedimento exsurge com o fato jurídico condenação colegiada, em 2º grau de jurisdição.
Passando adiante, é verdade que um réu não pode ocupar a linha sucessória da Presidência da República? Sim, assim entendeu o Supremo Tribunal Federal. Seguindo este limiar hermenêutico seria conseqüencial imaginar que o candidato à Presidência que restasse eleito por não existir ainda uma condenação em órgão colegiado, em 2ª instância, estaria inobstante impedido de exercer o cargo, e portanto, restaria afastado da Presidência da República pelo fato de ser réu, já que se não pode ocupar a linha sucessória da Presidência, com maior razão não poderia exercer o cargo de Presidente da República.
Colacionamos o art. 86, parágrafo, 4º da Constituição, não à toa. A decisão do Supremo que proíbe o do exercício de cargo de quem esteja na linha sucessória da Presidência da República não se aplicaria justamente ao Presidente da República, justamente porque a Constituição determina que um Presidente da República não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao mandato, na forma do art. 86, parágrafo 4º supra. Não falaríamos portanto em afastamento do presidente do cargo pelo fato de ser réu. Parece paradoxal, parece haver uma antinomia com o próprio sistema constitucional, porém é essa interpretação a que, pelo critério da especialidade, a que deve prevalecer.
A irrazoabilidade do sistema hermenêutico neste caso que ora abordamos não pára por aí. O mesmo parágrafo 4º ao proibir que o Presidente da República seja responsabilizado por atos estranhos ao exercício das suas funções faz com que processo em curso fique suspenso, paralisado, enquanto durar o seu mandato, até o momento da extinção do seu mandato.
No caminho da conclusão deste, assentamos que “Lula”, nos lindes do ordenamento posto, poderá sim ser candidato à Presidência da República mesmo sendo réu em diversos processo. Que ainda que condenado em 1ª instância não haverá impeditivo para sua candidatura, impeditivo que só apareceria em caso de condenação em 2ª instância antes do fato jurídico eleição de “Lula”. Ainda, caso eleito por ainda não existir condenação em 2ª instância, os processos serão automaticamente suspensos até a extinção do seu mandado. Há uma completa blindagem da figura do Presidente da República por atos que sejam estranhos ao seu mandato em curso, há uma irresponsabilidade temporária – enquanto perdurar o mandato pelos atos ilícitos do passado, que advêm precipuamente do art. 86, parágrafo 4º em comento.
Conforme pudemos perceber, o parágrafo 4º do art. 86 da Constituição da República combinado com a Lei da Ficha Limpa, que exige minimamente uma condenação de 2ª instância – colegiada – permite que o maior cargo eletivo do país possa ser ocupado e exercido por quem seja réu (com denúncia proposta pelo MP e aceita pelo magistrado competente) ou mesmo condenado em 1ª instância (a partir de decisão jurisdicional já exauriente, embora passível de recurso – sem trânsito em julgado).
Assim, no caso “Lula”, cogitar-se-ia de três possibilidades que poderiam causar sua inelegibilidade ou o seu impedimento para o exercício da presidência:
1. Uma decisão condenatória em 2ª instância o impediria de concorrer a Presidência da República – a competência para os processos vindos de Curitiba é do TRF da 4ª Região, sem prazo para ser pautado costuma se alongar por uma média de 11 meses – improvável causa de inexigibilidade pela ausência de tempo hábil, quando conjecturamos com a possibilidade de conveniente pedido de vistas, o que atrasaria ainda mais o termo de um acórdão que promoveria a conseqüência da inelegibilidade para o pleito eleitoral de 2018.2. A aprovação de uma emenda constitucional antes do pleito eleitoral de 2018, que modificasse o parágrafo 4º do art. 86 da Constituição Federal, que permitisse a continuidade do processo contra o Presidente da República (hoje a eleição acarreta a suspensão) e o afastamento de quem já fosse, por exemplo, condenado em 1ª instância, quando já há um juízo exauriente, do exercício da Presidência da República. Esta hipótese poderia revelar-se casuística e inconstitucional caso utilizada já para as eleições de 2018.3. Uma alteração na Lei da ficha Limpa, quando não se exigiria mais uma decisão colegiada, bastando, como no item supra, decisão condenatória em 1ª instância, e que já restasse aplicada ao pleito presidencial de 2018. Da mesma forma que a hipótese (2) quando ao casuísmo.
De lege ferenda, importante levarmos em conta que ocupar para ocupar cargos públicos, e com maior razão os cargos políticos Presidente da Câmara do Senado Federal, como o de Presidente da República indispensável deveria ser o critério da moralidade. Assim a comprovação de reputação ilibada como se infere como um dos requisitos para tornar-se ministro do Supremo Tribunal Federal.
A defesa de “Lula” trabalha corretamente no interesse do seu cliente e assim trabalhará até ultimadas as eleições de 2018. O foco é a maior morosidade possível nos processos onde “Lula” figure como réu para que não alcance seu desiderato final em 2ª instância, utilizando de todos os expedientes recursais, de requerimentos de dilações de prazos, de sucessivos pedidos de suspensão e anulação de seus processos. Princípios como o da celeridade processual e da efetividade do processo são inimagináveis para o bem da candidatura presidencial de Lula.
Não iremos adentrar nas possibilidades de renúncia, cassação ou impichamento do atual mandatário Michel Temer, assunto que já tratamos em nosso artigo pretérito. Porém todo o dito neste arrazoado se amolda perfeitamente em caso de término anômalo – a destempo – do mandato do Presidente em exercício. Conforme anunciado, porém, traremos nossas digressões com ares perfunctórios sobre as possibilidades de atendimento das vozes que gritam por “diretas já”.
O pós-positivismo e o neoconstitucionalismo apresentam ideologias muito aproximadas que em boa parcela foram capturadas pela Constituição Federal de 1988. Enquanto o pós-positivismo impõe uma necessária conexão entre o direito e a moral, o neoconstitucionalismo defende ser inviável qualquer tentativa de separação entre os valores éticos e o conteúdo jurídico. Quando percebemos que o nosso ordenamento ainda permite que os princípios morais restem destacados do direito em benefício do sistema posto de poder, saltam aos olhos a necessidade de avançarmos nos termos da Teoria Discursiva da Democracia Habermasiana, com a efetiva participação no procedimento em igualdade de direitos e oportunidades daqueles que serão afetados pelas decisões legislativas como garantia de cidadania e legitimidade.
Finalizamos deixando assente que é esta a hermenêutica que vislumbramos mais provável, mas que a questão dificilmente escapará da seara do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e precipuamente do Supremo Tribunal Federal (STF) conforme aduzido a início, pela sua complexidade, ocasião em que os Tribunais Maiores ofertarão a interpretação que julgarem a mais correta.
Emenda Constitucional prevendo eleições diretas já para 2017?
Temática de certa forma relacionada ao assunto até o momento tratado, mas que recusamo-nos peremptoriamente a flertar cm a ideia, refere-se à hipótese de eleições diretas para o caso do mandato de Temer sofrer solução de continuidade. Não poderíamos flertar com ideários oportunistas, com casuísmos, com o desrespeito a normatividade e estabilidade da Constituição, conforme aduziremos.
Uma emenda constitucional que pretendesse alterar o artigo constitucional que prevê eleições indiretas para os últimos dois anos de mandato presidencial descontinuado representaria indelével casuísmo para resolver interesses de agora, caso utilizado neste momento de crise, de anormalidade, o que denotaria uma ruptura constitucional certamente intolerável. Assim a PEC, caso aprovada, não poderia valer para o próximo pleito, assim a PEC que quer alterar o artigo 81, parágrafo 1º da CRFB para prever eleições indiretas só para o caso de vacância no cargo presidencial no último ano do mandato revelar-se-ia inconstitucional.
Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.§ 1º – Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.§ 2º – Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.
Indo além, o procedimento para a aprovação de uma PEC demanda um período de pelo menos seis meses para cumprimentos dos seus requisitos constitucionais de aprovação, quando os gastos com uma eleição direta para o cumprimento de apenas um ano revelar-se-ia desproporcional. E em que lapso temporal dar-se-ia o período de campanhas eleitorais para eleições diretas?
Desta feita, além da sua inconstitucional aplicação episódica para o caso em tela, esta emenda teria que ser aprovada em tempo recorde ainda neste ano de 2017, sem as necessárias deliberações e participações dialógicas populares neste debate político-constitucional que se revelaria a toque de caixa, e mesmo assim na cumprir-se-ia o período destinado às campanhas eleitorais para que as propostas restassem conhecidas.
E como ignorarmos artigo que o STF entende como cláusula pétrea, que trata do princípio da anualidade eleitoral, que segundo o próprio STF aplica-se também às emendas constitucionais?
Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.
Absolutamente inviável portanto a proposta para este momento, nos revelando mais uma manifestação de oportunistas “palanqueiros” arrebatadores de platéia que trabalham na desconstrução da melhor compreensão de leigos e desavisados.
Há uma PEC, PEC 227/2016, que até o momento do encerramento das razões do presente artigo encontra-se em seus passos iniciais procurando a aprovação pela CCJ – Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania – da Câmara dos Deputados.
Não poderíamos deixar de lembrar que a democracia permite ao povo que participe de nosso processo político em grau razoável, ainda que não em qualidade ideal, mas suficiente para alterarmos histórias, e que nosso Estado Democrático de Direito nos atribui esta responsabilidade maior. Por fim lembramos que a nossa Constituição não pode ser vitimada por maiorias oportunistas de momento, e que só se mostrará efetiva se respeitada sem ludíbrios.
Fonte: novoeleitoral.com
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