Sumário: 1 Introdução; 2 A Constituição da República de 1988 e o Estado Democrático de Direito: a explosão da litigiosidade de massa; 3 As ondas de reformas processuais após a Constituição de 1988 e os Pactos Republicanos: solução para a morosidade da prestação jurisdicional?; 3.1 O I Pacto Republicano: a implementação da reforma do Poder Judiciário; 3.2 O II Pacto Republicano: aprovação de novas propostas legislativas; 3.3 A aprovação do Código de Processo Civil de 2015; 4 A litigiosidade crescente e o agravamento da crise do Poder Judiciário: os dados do Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça; 5 A morosidade dos tribunais – ineficácia prática da criação de novas técnicas de julgamento para agilização dos processos; 6 Os Litigantes Habituais: o uso patológico do Poder Judiciário no Brasil; 7 Conclusão; 8 Referências
Palavras-chave: Poder Judiciário – crise – litigante habitual – reforma processual – ineficácia
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo visa abordar a crise do Poder Judiciário, desenvolvendo uma análise crítica e necessária dos problemas enfrentados pelo Sistema de Justiça no Brasil.
Fala-se em “crise da Justiça” causada pela sobrecarga de processos nos tribunais, pela lentidão processual e pela ausência de uniformidade da jurisprudência.
É por isso que o direito processual civil está inserido em um contexto de ampla reforma legislativa, com destaque para a vigência do CPC 2015, com a criação de novas técnicas processuais na tentativa de aprimoramento e aceleração dos mecanismos de solução dos conflitos.
A cultura jurídica brasileira seria adepta, nas palavras de Rodolfo Mancuso, da nomocracia, em razão do imediatismo da solução legislativa e o fato de que a edição e divulgação de uma nova legislação a respeito de assunto problemático podem passar à sociedade a impressão de que as medidas já foram tomadas, diminuindo a insatisfação geral.
Intenta-se alertar, no entanto, que as reformas processuais já implementadas ao longo dos anos não estão alcançando o seu desiderato haja vista o aumento crescente da litigiosidade e a persistente lentidão dos julgamentos.
A ineficácia das inovações legislativas se mostra evidente pelas estatísticas do relatório “Justiça em números” do CNJ, as quais serão abordadas ao longo da pesquisa, e pelo fato das reformas não remediarem as causas da litigiosidade excessiva, mas apenas as consequências do excesso de processos, o que é absolutamente insuficiente.
Nesse contexto, a abordagem do chamado “litigante habitual” será relevante para se demonstrar que a conduta recalcitrante de alguns poucos agentes sociais monopoliza e inviabiliza a atuação do Poder Judiciário, tornando inócuas as inovações da legislação processual diante da ausência de previsão de reprimenda mais rígidas e da ausência de mudança real da postura desses agentes.
2. A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A EXPLOSÃO DA LITIGIOSIDADE DE MASSA
No Brasil, o Constitucionalismo contemporâneo e o paradigma do Estado Democrático de Direito emergiram com o advento da Constituição da República de 1988, com ampla reestruturação do Estado, especialmente do Poder Judiciário, acompanhada da garantia de novos direitos. A sociedade globalizada impulsionou a necessidade da tutela de interesses metaindividuais, classificados como direitos difusos fundamentais de terceira dimensão.
O fundamento desse novo paradigma do Estado não é apenas a defesa dos direitos de primeira dimensão (direitos civis e políticos) e de segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturais), mas também a efetiva proteção e implementação dos direitos fundamentais de terceira dimensão (direitos difusos).
Já se alardeia, inclusive, a garantia dos direitos de quarta e quinta dimensões. Paulo Bonavides, por exemplo, defende a existência dos direitos de quarta dimensão decorrentes da globalização política, relacionados à democracia, à informação e ao pluralismo, in verbis:
A globalização política neoliberal caminha silenciosa, sem nenhuma referência de valores. (…) Há, contudo, outra globalização política, que ora se desenvolve, sobre a qual não tem jurisdição a ideologia neoliberal. Radica-se na teoria dos direitos fundamentais. A única verdadeiramente que interessa aos povos da periferia. Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional. (…) A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. É direito de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. (…) os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infraestruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia.
Como o sistema de direitos visa a incorporar os anseios e necessidades humanas que se apresentam com o tempo, José Adércio Leite Sampaio ressalta que já há quem fale de uma quinta geração dos direitos humanos com múltiplas interpretações, como, por exemplo, direito ao patrimônio genético e à proteção contra o abuso de técnicas de clonagem.
O acesso efetivo à Justiça ganha, portanto, novo impulso com o advento dos direitos de terceira e quarta gerações, relacionados ao meio ambiente, ao desenvolvimento sustentável, à proteção do consumidor, e demais direitos difusos e coletivos. Por conseguinte, as declarações jurídicas consagraram a prerrogativa inarredável de que todo cidadão faz jus a receber dos tribunais solução efetiva e em tempo razoável para os atos que violem seus direitos.
Por outro lado, a ineficiência do Estado quanto à efetivação dos direitos básicos à educação, saúde, moradia e ao trabalho assegurados pela Constituição da República de 1988 tem acarretado grande insatisfação social. Ou seja, existe uma discrepância alarmante entre as promessas constitucionais e a realidade vivenciada, demonstrando a conduta recalcitrante dos entes públicos e grandes empresas – instituições financeiras, concessionárias de serviços públicos em geral – em transformar e melhorar a qualidade e eficiência dos serviços.
Nesse contexto, o Poder Judiciário passou a representar uma peça fundamental no processo de densificação social das normas, visando à concretização de direitos carentes de políticas públicas.
Dierle Nunes alerta que “o Judiciário trabalha com as consequências do não cumprimento dos direitos, mas dificilmente com as causas, para as quais, em grande medida, haveria a necessidade de políticas públicas mais idôneas promovidas pelo Executivo”.
Assim, o Poder Judiciário apático e inerte de outrora cede seu lugar a um Poder prospectivo e atuante, em decorrência da denominada “judicialização” das políticas públicas para a efetivação dos direitos.
O ministro do STF, Luis Roberto Barroso, assim leciona sobre o fenômeno da “judicialização”:
Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. Fruto da conjugação de circunstâncias diversas, o fenômeno é mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês (…) Exemplos numerosos e inequívocos de judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do direito.
Através do fenômeno da judicialização da política e das relações sociais, o Poder Judiciário está ampliando sua esfera de atuação por via de um poder de revisão dos atos originados dos Poderes Executivo e Legislativo, deslocando os discursos do âmbito da esfera de representação política para a atuação decisória dos tribunais, o que, sem sombra de dúvida, causou um redimensionamento do papel do Judiciário para o qual ele não estava preparado.
Isso provocou a explosão da litigiosidade de massa ou de demandas repetitivas, que associada a questões funcionais e estruturais, trouxe graves implicações à celeridade processual.
Enquanto em 1990 o Judiciário havia recebido cerca de 04 milhões de processos em constante elevação, na década de 2000, o volume ultrapassou 20 milhões de ações e, em 2014, alcançou o patamar de cem milhões de demandas, conforme Relatório Justiça em números do Conselho Nacional de Justiça.
Boaventura de Sousa Santos já advertia há mais de uma década que tudo isso resultaria em uma explosão de litigiosidade à qual a administração da justiça dificilmente poderia responder, acarretando sérios problemas de eficiência e morosidade ao Poder Judiciário.
3. AS ONDAS DE REFORMAS PROCESSUAIS APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS PACTOS REPUBLICANOS: SOLUÇÃO PARA A MOROSIDADE DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL?
A ineficiência e a morosidade do Poder Judiciário passaram a integrar nas últimas décadas a pauta do Congresso Nacional, do Executivo, através do Ministério da Justiça, e do próprio Poder Judiciário que tenta implantar novas políticas de gestão e tramitação processual para aceleração da prestação jurisdicional.
Disseminou-se no Brasil a ideia de que os “defeitos” da legislação processual seriam os principais responsáveis pela morosidade judicial, o que gerou uma onda de reformas legislativas que, a toda evidência, não surtiram o efeito desejado ao longo dos anos.
Com efeito, a “Crise do Poder Judiciário” não pode ser entendida de forma simplista como se fosse apenas uma questão de direito processual, quando, na verdade, ela envolve uma crise de todo o Sistema de Justiça e, principalmente, do próprio Estado que não consegue, já há muito tempo, proporcionar a satisfação do cidadão com o acesso aos serviços públicos essenciais de qualidade.
Rodolfo Mancuso aponta ainda como concausas da crise do Poder Judiciário, entre outras, a judicialização das políticas públicas em razão da ineficiência das instâncias administrativas, o que dá margem à discricionariedade judicial e ao alargamento do campo de atuação do Poder Judiciário, o gigantismo desordenado do próprio Poder Judiciário no Brasil que fomentaria a litigiosidade e a cultura demandista brasileira, a deficiente divulgação e utilização de outros meios de resolução de conflitos, as duas classes de litigantes (os habituais ou frequentes e os eventuais ou esporádicos) e a desigual distribuição dos ônus e encargos processuais entre eles.
O gigantismo da estrutura do Poder Judiciário no Brasil se dá muitas vezes pela ausência de planejamento estratégico efetivo na distribuição dos órgãos jurisdicionais. Não raras vezes, a criação e instalação de órgãos de primeira instância do Poder Judiciário são motivadas por interesses e interferências muito mais políticas do que técnicas para melhor equilíbrio e organização da Justiça. De igual modo, a não criação de órgãos necessários também ocorre por motivações divorciadas da análise técnica e estratégica necessária para a melhor distribuição do Sistema de Justiça. É o que se dá, por exemplo, com o não desmembramento do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, que ainda abrange 13 Estados da federação mais o Distrito Federal, acarretando grave desequilíbrio do acesso ao segundo grau da Justiça Federal no Brasil. A ausência de planejamento gera, enfim, custos desnecessários e ineficiência da atividade jurisdicional no Brasil.
O professor Barbosa Moreira também critica o “mito” de que a sobrecarga de processos e a lentidão do Poder Judiciário seriam causadas pela legislação processual. Para ele, a demora processual resulta da conjugação de múltiplos fatores, entre os quais também concorre a lei, que, todavia, com todas as imperfeições que possa ter, não ocupa o lugar de maior relevância.
Morais e Spengler apontam, na sua visão, quatro vertentes da crise do Sistema de Justiça, quais sejam: a crise estrutural, a crise objetiva ou pragmática, a crise subjetiva ou tecnológica e a crise paradigmática.
A crise estrutural é aquela que decorre da deficiência de gestão, da ausência de infraestrutura adequada, número insuficientes de juízes e servidores. A crise objetiva ou pragmática, segundo os referidos juristas, refere-se aos aspectos pragmáticos da atividade jurídica, englobando questões relacionadas à linguagem técnico-formal utilizada nos ritos e trabalhos forenses, a burocratização e lentidão dos procedimentos, o excesso de recursos e o acúmulo das demandas sem solução em tempo razoável. A crise subjetiva ou tecnológica é a que se vincula à incapacidade tecnológica dos operadores jurídicos tradicionais lidarem com novas realidades fáticas que exigem não apenas a construção de novos instrumentos legais, mas também a (re)formulação das mentalidades em relação à nova realidade social que se apresenta. A crise paradigmática é aquela que trata sobre os métodos e conteúdos utilizados pelo direito para a busca de um tratamento pacífico para os conflitos a partir da atuação prática da norma aplicável ao caso sub judice. Já a crise funcional surge, enfim, a partir da inadequação das leis publicadas, a intrincada processualística e a deficiência do sistema de provocação do Poder Judiciário.
Evidentemente que não se pretende aprofundar o estudo sobre as referidas vertentes, pois não se trata do objeto principal deste artigo, mas apenas demonstrar que a complexidade dos problemas do Sistema de Justiça do Brasil vai muito além da necessidade de reforma da legislação processual.
A crise é, portanto, sistêmica, envolvendo questões afetas à gestão do próprio Poder Judiciário, questões relacionadas à formação nos cursos de graduação em Direito, à formação e recrutamento dos magistrados, à ausência de incentivo e integração dos métodos alternativos de solução de conflitos, questões relacionadas ao desprestígio do processo coletivo, ao despreparo e à ineficiência dos entes públicos, podendo-se destacar, ainda, a postura dos litigantes habituais (repeat players).
Em que pesem o alerta e as críticas acima apontadas, é fácil perceber que a preocupação voltada apenas com as reformas da legislação processual foi e continua sendo a tônica encontrada pelos poderes constituídos da República para solucionar a crise.
O enorme arcabouço legislativo impulsionado pelos Pactos da Republica está longe de representar a solução adequada para a crise do Poder Judiciário, mormente no que se refere à atuação dos litigantes habituais.
3.1 O I PACTO REPUBLICANO: A IMPLEMENTAÇÃO DA REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO
A crise aprofundou o debate sobre a necessidade de reforma do próprio Poder Judiciário, culminando com a promulgação da Emenda Constitucional (EC) n. 45, de 2004.
Com o propósito de implementar a reforma constitucional preconizada pela referida emenda, foi subscrito pelos chefes dos três Poderes da República, em dezembro de 2004, um Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano, consubstanciado em vários compromissos fundamentais, entre os quais, destacam-se a reforma do sistema recursal e dos procedimentos para desburocratizar o processo, a implementação da informatização, além de se estabelecer uma política de coerência entre a atuação administrativa e as orientações jurisprudenciais já pacificadas para diminuir a litigiosidade.
Essa postura de coerência preconizada pelas autoridades não se constata no dia a dia da prática forense, especialmente pela conduta recalcitrante dos litigantes habituais que insistem com suas teses e defesas até as últimas consequências, abarrotando os tribunais, principalmente os superiores, o que retarda a solução das controvérsias de grande magnitude e impacto em diversos processos em tramitação.
Como resultado do I Pacto Republicano, iniciado em 2004, vários projetos de lei de reforma do Código de Processo Civil foram aprovados.
Não obstante as reformas aprovadas, o Conselho Nacional de Justiça divulgou, no Encontro Nacional do Judiciário, pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, no período de 09 a 11 de fevereiro de 2009, na qual 1.200 (um mil e duzentos) entrevistados consideraram a Justiça cara, lenta e manipulável pela imprensa, empresários e políticos. A lentidão da Justiça foi a característica mais citada pelos entrevistados: 88%. Em seguida, os altos custos para seguir com uma ação judicial (78%), a falta de imparcialidade (69%) e a influência sofrida pelos juízes na hora de decidir (63%).
A criação da técnica de julgamento dos recursos repetitivos e da súmula vinculante não trouxe celeridade processual, mas apenas aumentou o risco de padronização decisória no Sistema de Justiça no Brasil como forma de estabilização da jurisprudência.
3.2 O II PACTO REPUBLICANO: APROVAÇÃO DE NOVAS PROPOSTAS LEGISLATIVAS
Envolto por um contexto social ainda de muito descrédito em relação à celeridade e eficiência do Poder Judiciário, firmou-se, em abril de 2009, o II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo.
Para a consecução dos objetivos estabelecidos no referido Pacto, foram assumidos novos compromissos públicos na linha do primeiro pacto firmado. Entre outros pontos, firmou-se o compromisso de fortalecer as Defensorias Públicas, a mediação e a conciliação, estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos, além de incentivar a ampliação da edição de súmulas administrativas e a constituição de Câmaras de Conciliação no intuito de diminuir a litigiosidade, sobretudo envolvendo os entes públicos considerados os maiores litigantes do Sistema de Justiça.
E, como resultado dos esforços conjuntos empreendidos no âmbito dos referidos Pactos Republicanos, várias propostas foram implementadas ao longo dos últimos anos, especialmente a aprovação de leis que acarretaram a introdução no sistema processual de novos instrumentos como o julgamento imediato das ações repetitivas, técnica de julgamento dos recursos extraordinários (repercussão geral) e especiais (recursos repetitivos), as súmulas impeditivas de recurso e das súmulas vinculantes. A execução dos títulos extrajudiciais foi simplificada com a criação e a modificação das formas de expropriação de bens (adjudicação, alienação particular, parcelamento imobiliário), e foram introduzidos atos executivos no processo de conhecimento com a criação da fase de cumprimento de sentença (execução sincrética).
Destacam-se também a Lei 12.016/09, que regulamentou o mandado de segurança, e a Lei 12.011/09, que estruturou a Justiça Federal com a criação de 230 varas federais. Foi publicada a Lei 12.012/09, que criminalizou a entrada de aparelhos celulares e similares nas penitenciárias do país; a Lei 11.969, que facilita o acesso de advogados aos autos de processos, em cartório; e a Lei 11.965, que prevê a participação de defensores públicos em atos extrajudiciais, como assinatura de partilhas e inventários, separação e divórcio consensual. A Lei 11.925 possibilitou, por sua vez, a declaração de autenticidade dos documentos pelos advogados.
Foi sancionada, ainda, a Lei 12.019, de 21 de agosto de 2009, que regulamenta a convocação de magistrados para instrução de processos de competência originária do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Também no âmbito do II Pacto, foi publicada a Lei nº 12.322/2010, para alterar o agravo de instrumento. A Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009, institui os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, com competência para processar, conciliar e julgar causas cíveis, de pequeno valor, de interesse dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ampliando o acesso à Justiça.
Importante ressaltar, finalmente, que a Defensoria Pública foi fortalecida com a aprovação da Emenda Constitucional 74, que lhe conferiu autonomia administrativa e financeira no âmbito da União, e pela Emenda Constitucional 80, de 04 de junho de 2014, que fixou prazo de 08 anos para que os entes públicos dotassem todas as comarcas de defensores públicos.
3.3 A APROVAÇÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Em complemento a todo o ciclo de modificações legislativas do Sistema de Justiça ao longo dos últimos vinte anos, foi sancionada a Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, com sua entrada em vigor a partir de março de 2016, que institui o novo Código de Processo Civil.
A novel legislação processual sistematizou as reformas pontuais já implantadas na legislação em vigor, no intuito de conferir maior funcionalidade, e também buscou inovar o direito processual com novas técnicas processuais de julgamento dos conflitos, como o incidente de resolução de demandas repetitivas, o incidente de assunção de competência, além da instituição de um sistema de precedentes vinculantes.
A criação do novo Código de Processo Civil respalda-se em razões jurídicas e sociais que legitimam o surgimento do novo diploma, mas ele não pode ser colocado como se fosse um remédio adequado e suficiente para debelar a crise da morosidade da prestação jurisdicional, criando a falsa expectativa de que a situação será resolvida.
O número expressivo de leis aprovadas e os projetos ainda em andamento demonstram que, no Brasil, impera o falso entendimento de que basta a criação de novas leis para que todos os problemas da morosidade processual sejam resolvidos e isso não é verdade.
Desde a vigência do CPC 2015, há mais de um ano, não se verifica uma modificação concreta da postura dos litigantes e tampouco maior agilidade dos julgamentos pelo Poder Judiciário.
4. A LITIGIOSIDADE CRESCENTE E O AGRAVAMENTO DA CRISE DO PODER JUDICIÁRIO: OS DADOS DO RELATÓRIO JUSTIÇA EM NÚMEROS DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
O relatório “Justiça em Números”, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que tramitam aproximadamente cem milhões de processos judiciais no Brasil com perspectiva de crescimento do acervo processual.
A referida pesquisa constatou de forma contundente que o quantitativo de processos aumentou 30% em um ano, tendo sido ajuizados mais 28 milhões de feitos no ano de 2014, os quais não foram julgados e arquivados na mesma proporção, aumentando-se ainda mais o estoque de demandas pendentes.
De acordo com o relatório, a série histórica da movimentação processual do Poder Judiciário permite visualizar o aumento contundente do acervo processual no período, visto que os casos pendentes (70,8 milhões) crescem vertiginosamente desde 2009 e, atualmente, equivalem a quase 2,5 vezes do número de casos novos (28,9 milhões) e dos processos baixados (28,5 milhões).
Dessa forma, mesmo que o Poder Judiciário fosse paralisado sem ingresso de novas demandas, com a atual produtividade de magistrados e servidores seriam necessários, no mínimo, 02 anos e meio de trabalho para que se julgasse todo o estoque. Entretanto, como não se julga sem contraditório, antever o tempo para sentenciar um processo é pura alquimia, o encontro da pedra filosofal. Como historicamente a entrada de processos é sempre superior à saída, a tendência é de crescimento do acervo. Além disso, apesar do aumento de 12,5% no total de processos baixados no período 2009-2014, os casos novos cresceram em 17,2%, fato que contribuiu para o acúmulo do estoque de processos.
Ou seja, mesmo diante de todo o arcabouço legislativo introduzido para a melhoria do Sistema de Justiça no Brasil, o Poder Judiciário não consegue reduzir nem o quantitativo de processos ajuizados, aumentando ano a ano o número de casos pendentes.
Na Justiça Federal, por exemplo, tramitam aproximadamente 12 milhões de demandas, o que gera a carga de trabalho absurda e desumana de aproximadamente 7.000 processos por magistrado. E, a despeito do congestionamento, a Justiça Federal brasileira é um dos ramos mais produtivos do Poder Judiciário, uma vez que cada um dos seus magistrados resolve de forma definitiva uma média de 2.113 processos por ano, segundo dados do Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça divulgado em 2015.
Os cinco tribunais regionais federais do país registraram aumento de demanda processual de 20,8% apenas em 2014, segundo aponta o referido relatório Justiça em Números. O levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ registrou que, depois de anos de relativa estabilidade, com variação de 3% entre 2009 e 2013, o total de processos novos na Justiça Federal chegou a 4 milhões em 2014, um aumento de 700 mil casos em relação a 2013.
Esse cenário demonstra que, embora tenham sido criados por lei diversos mecanismos que se prestam a fomentar a racionalidade na utilização do serviço judiciário, a exemplo do processo eletrônico e das novas técnicas de julgamento dos recursos extraordinários (repercussão geral) e especiais (recursos repetitivos) já referidas, a perspectiva concreta e realista não é de redução de acervo e, principalmente, não é de celeridade processual, estando longe disso.
Com o atual quantitativo de demandas, torna-se distante a concretização dos direitos à razoável duração do processo e à efetividade da jurisdição, mesmo com o incremento de recursos materiais, o que confere à população tão somente a possibilidade de mero ajuizamento de demandas judiciais – um acesso à justiça meramente formal -, e não a solução célere e efetiva dos conflitos.
O Brasil vive um crescimento exponencial da sua litigiosidade e a crise, nesse cenário que se apresenta, não será remediada e tampouco atenuada pela nova legislação processual que não ataca diretamente a causa do problema.
5. A MOROSIDADE DOS TRIBUNAIS – INEFICÁCIA PRÁTICA DA CRIAÇÃO DE NOVAS TÉCNICAS DE JULGAMENTO PARA AGILIZAÇÃO DOS PROCESSOS
Outro ponto relevante, que não pode ser ignorado na presente análise, relaciona-se com o papel e a atuação prática dos tribunais diante das novas técnicas de julgamento já implementadas para “remediar” a crise de morosidade da Justiça.
Tal abordagem se faz necessária para verificar, a partir de diagnósticos do Poder Judiciário, se, de fato, a concentração nos tribunais do poder de decisão dotado de eficácia vinculante e erga omnes a partir de inovações de técnicas de julgamentos repercute necessariamente na celeridade da prestação jurisdicional e na uniformização da jurisprudência – tônica das reformas legislativas.
No relatório da pesquisa Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça de 2005, anterior à reforma processual, foi diagnosticada uma alta sobrecarga dos tribunais em face do nível de recorribilidade das decisões judiciais. Somando-se os casos novos que ingressaram no 2º grau com o número de casos pendentes de julgamento, e dividindo-se este montante pelo número de magistrados, chegou-se aos seguintes denominadores referentes à carga de trabalho:
Média nacional por magistrado/ministro:
Justiça comum federal (TRF’s): 23.321 casos (processos ou recursos) por magistrado, em 2ª instância.
Justiça estadual (TJ’s): 1.221,41 casos (processos ou recursos) por magistrado, em 2ª instância.
STF: de 25.367 processos por ministro, em 2005.
Constatou-se, ainda, que um quantitativo elevado de processos se refere apenas a alguns temas e poucos litigantes, principalmente na Justiça Federal, onde os números de demandas repetitivas (em matéria tributária e previdenciária, por exemplo) e propostas por ou contra o poder público são expressivos.
Ou seja, mesmo se tratando de ações que envolvem poucos litigantes e temas repetitivos, os tribunais de 2º grau no âmbito da Justiça Federal não conseguem julgá-las em tempo razoável, estando o contingente de processos em constante elevação.
O relatório da Justiça em Números divulgado, em 2015, pelo CNJ destaca o aumento da taxa de congestionamento nos tribunais federais para 70,5% em 2014, maior índice da série histórica correspondente ao período de 2009 a 2014. Vale dizer, de cada 100 (cem) processos em tramitação nos tribunais federais, aproximadamente 70 (setenta) não tiveram solução definitiva, o que demonstra a situação alarmante do congestionamento da 2ª instância.
A situação não é diferente nos tribunais superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, que, mesmo diante de novas técnicas de aceleração de julgamentos, não conseguiram diminuir a litigiosidade e, principalmente, não conseguiram, até o presente momento, uniformizar as teses jurídicas – papel que lhes foi atribuído pela Constituição.
De acordo com o relatório de 2015 do CNJ, o Superior Tribunal de Justiça iniciou o ano de 2014 com um estoque de 351.450 processos, quase 12% a mais do que no ano anterior. O número de processos baixados no ano e a produtividade tanto de servidores da área judiciária quanto de ministros diminuíram em relação ao período anterior. Com isso, estima-se que, ao final de 2014, o estoque tenha crescido 11%, mantendo a tendência histórica de crescimento do acervo.
Numa pesquisa feita no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no período de outubro de 2014 a janeiro de 2015, constatou-se que a demora na resolução dos recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça e da Repercussão Geral no Supremo Tribunal Federal somente faz crescer o número de processos sobrestados ou suspensos na Presidência ou Vice-Presidência dos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais brasileiros, tornando esses institutos inócuos em relação à finalidade para a qual foram criados.
De acordo com dados informados pelo próprio Supremo Tribunal Federal, desde 2007, ou seja, num período de uma década, a Corte julgou 354 temas com repercussão geral, apenas 55% dos 642 casos que tiveram a repercussão geral reconhecida até julho de 2017.
No primeiro semestre de 2017, foram julgados apenas 36 recursos com repercussão geral. A demora dos julgamentos, gerando o sobrestamento de milhares de processos por prazos indefinidos, atenta contra o Direito, por violentar a segurança jurídica, a previsibilidade decisória almejada pelo instituto e, igualmente, a duração razoável do processo.
O problema da ineficiência dos tribunais é muito bem ilustrado pelo estudo de caso realizado pela juíza federal Vânila Moraes acerca das demandas repetitivas referentes à cobrança do reajuste de 28,86% por servidores públicos federais. Identificou-se que o tempo entre o surgimento do conflito – na situação específica, a violação à isonomia ocorreu em junho de 1993 com a concessão do referido reajuste apenas aos militares – e a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a repercussão geral do tema em 06 de outubro de 2010, transcorreram mais de dezessete anos. No caso, o Poder Público insistiu em recorrer às Cortes Superiores, embora já existisse, desde 2000, súmula da própria Advocacia-Geral da União no sentido da concessão do reajuste.
A situação se repete em relação a vários outros temas controvertidos pendentes de análise nos tribunais superiores, demonstrando que as modificações legislativas não conseguiram acelerar os julgamentos.
É certo que o CPC/2015 não resolverá o problema de represamento dos processos e da demora dos tribunais para o julgamento das temáticas relevantes. Aliás, antes mesmo da sua entrada em vigor, foi publicada a Lei n. 13.256, de 04 de fevereiro de 2016, modificando o art. 12 no intuito de flexibilizar o critério da ordem cronológica para julgamento dos processos. Sem sucesso, contudo, porque a interposição da palavra “preferencialmente” com a intenção de conferir discricionariedade ao órgão julgador não prospera. A ultrapassagem na ordem cronológica pressupõe fundamentação clara sobre as razões autorizativas. Do contrário, há violação à isonomia e à impessoalidade, favorecendo alguns em detrimento de vários desafortunados.
A referida lei também suprimiu o §10º do artigo 1.035 e o §5º do artigo 1.037. Os referidos dispositivos estabeleciam um marco temporal de duração da suspensão de processos em todo território nacional prevista no artigo 1.037, II, o que poderia induzir maior agilidade dos tribunais superiores no julgamento dos recursos repetitivos, impedindo que tal suspensão se eternizasse pela mora dos tribunais ao julgar os recursos.
Em face da revogação dos prazos limites, o sistema de julgamento de recursos pelos tribunais superiores pode manter, sem qualquer sanção ou filtro, a situação de suspensão de centenas de milhares de processos por prazo indeterminado. Isso significaria uma verdadeira cláusula de barreira que atende àqueles que lesam o direito de toda a sociedade, as concessionárias de serviço público, as instituições financeiras, o Estado, os corruptos, inviabilizando direitos e garantias fundamentais, o mais básico de todos os direitos humanos, conforme Cappelletti, o do pleno acesso à justiça.
A garantia de acesso à justiça não deve ser entendida como a mera admissão do processo ou a possibilidade de ingressar em juízo; é sim, a garantia de que os cidadãos possam demandar e defender-se adequadamente em juízo, isto é, ter acesso à efetividade no processo com os meios e recursos a ele inerentes de modo a obter um provimento jurisdicional justo, construído em tempo razoável a partir do amplo debate e participação democrática dos sujeitos interessados.
Sem olvidar, ainda, de que isto poderá causar uma perniciosa e inconstitucional discricionariedade dos tribunais superiores em escolher quando determinadas temáticas deverão ser dirimidas e quando deverão ser mantidas em suspensão.
6. OS LITIGANTES HABITUAIS: O USO PATOLÓGICO DO PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL
Não é possível falar-se em diminuição de processos a médio e longo prazos e em celeridade da prestação jurisdicional sem que se resolva, com prioridade, o problema gravíssimo da litigância habitual patológica no Brasil.
Ressalta-se que alguns poucos temas controvertidos, cuja solução se arrasta nos tribunais superiores, são objetos de milhares de processos em tramitação no Poder Judiciário, abarrotando todas as instâncias. São demandas repetitivas ou de massa que foram ajuizadas em face de poucos litigantes – os entes públicos em todas as esferas da federação, instituições financeiras e pessoas privadas prestadoras de serviços públicos. Trata-se do chamado litigante habitual.
A propósito, dentre os obstáculos a serem superados para se desobstruir o acesso efetivo à justiça célere e efetiva, Cappelletti e Garth incluem o que denominam ‘possibilidades das partes’, subdividida em: recursos financeiros; na aptidão para reconhecer um Direito e propor uma ação ou sua defesa; e na atuação dos litigantes ‘eventuais’ e litigantes ‘habituais’.
A classificação dos litigantes – eventuais e habituais – foi desenvolvida pelo pesquisador Marc Galanter, da Universidade de Wisconsin, utilizado como referencial teórico e de pesquisa por Cappelletti e Garth, e se baseia na frequência de encontros destes litigantes com o sistema judicial. Ou seja, no número de vezes que o litigante maneja o processo e submete seus interesses aos órgãos do Poder Judiciário.
O estudo revelou inúmeras vantagens dos litigantes habituais, tais como: (I) maior experiência com o Direito que lhes possibilita melhor planejamento do litígio; (II) uso de economia de escala, consistente no uso de uma mesma estrutura para atender a um maior número de casos; (III) oportunidade de desenvolver relações informais com os membros da instância julgadora; (IV) diluição dos riscos da demanda por maior número de casos e (V) a possibilidade de testar estratégias em casos específicos de modo a garantir expectativa mais favorável nos casos futuros.
A habitualidade do litigante demonstra de forma concomitante a presença daqueles outros dois aspectos: posse de recursos financeiros e aptidão para reconhecer um Direito e propor uma ação ou apresentar sua defesa. Os referidos autores concluem, a partir da classificação de Galanter, que essas vantagens próprias dos litigantes habituais lhes conferem maior eficiência e vantagem processual quando comparados com os litigantes individuais ou eventuais.
De igual modo, na visão de Rodolfo Mancuso, os litigantes habituais são aqueles sujeitos que trabalham em economia de escala com os processos judiciais, possuem departamento jurídico próprio ou escritórios de advocacia estruturados para a gestão de conflitos de massa, com intuito de ganhar o maior tempo possível com a duração dos processos, correndo poucos riscos financeiros pelo resultado de demandas individuais.
Eles podem diluir os riscos da demanda por maior número de casos, o que diminui o peso de cada derrota, que será eventualmente compensado por algumas vitórias. E também podem testar estratégias diferentes em determinados casos (de natureza material ou processual), de modo a criar precedentes favoráveis em pelo menos alguns deles, garantindo expectativa mais favorável em relação a casos futuros.
A existência do litigante habitual não é, em si, um mal. Em uma sociedade de massas é natural que existam as pessoas que, pelo risco da atividade e o papel que desempenham, tenham mais conflitos que outras, podendo, em última análise, causar a propositura de ações perante o Poder Judiciário.
O que deve ser aferido é se o referido litigante habitual abusa de tal condição para se beneficiar da litigiosidade de massa e da morosidade do Sistema de Justiça. Essa situação parece ser o caso da Justiça no Brasil, já que esses litigantes habituais dificilmente alteram ou melhoram suas práticas administrativas em favor de outros cidadãos não beneficiários de julgamentos pelo Poder Judiciário.
A propósito, em pesquisa divulgada, em 2011, a FGV Direito Rio revelou que os entes públicos, principalmente os federais, possuem participação em 90% dos recursos em tramitação no Supremo Tribunal Federal. Pela ordem, os maiores litigantes são: Caixa Econômica Federal, União, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Estado de São Paulo, Banco Central do Brasil, Estado do Rio Grande do Sul, Município de São Paulo, Telemar, Banco do Brasil e Estado de Minas Gerais.
O retrato da litigiosidade causada pelo Poder Público também é revelado pelo relatório do Conselho Nacional de Justiça sobre os “100 maiores litigantes”, mostrando que aproximadamente 39% dos processos novos em tramitação no Poder Judiciário envolvem os entes públicos e outros 37% envolvem as instituições financeiras. Ou seja, o setor público e os bancos respondem sozinhos por 76% dos processos em tramitação.
Diante dos referidos números da pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, o professor Marcelo Abelha afirma que a crise da demora da prestação jurisdicional deveria ser analisada sob ângulo diverso, respondendo-se algumas indagações críticas que apresenta. Sem os 15 maiores litigantes do país, qual seria o número de demandas em curso no Poder Judiciário? Haveria tal crise? Por que não desenvolver formas alternativas de solução de conflitos para esses 15 maiores litigantes? Por que para esses litigantes interessa que as suas lides desemboquem no Poder Judiciário? Por que para o Poder Público é melhor ser réu em juízo do que realizar políticas públicas efetivas e respeitar os direitos fundamentais? Por que não incentivar e aperfeiçoar a tutela jurisdicional dos interesses individuais homogêneos por meio de ações coletivas que já existem e se mostram adequadas à proteção dos litigantes eventuais?
Para a juíza federal Priscila Corrêa, as pesquisas do Conselho Nacional de Justiça revelam que as causas mais significativas da morosidade do Poder Judiciário são o excesso de demandas provocado principalmente pela ineficiência do Poder Executivo em implementar direitos, deslocando para o Poder Judiciário muitos conflitos que deveriam e poderiam ser facilmente solucionados na instância administrativa, o que, nas suas palavras, demonstra o uso patológico dessa instituição pelo Poder Público.
Assim, quando o Poder Executivo insiste em não aplicar os posicionamentos pacificados pelos tribunais superiores, levando milhares de pessoas naturais e jurídicas a ajuizar ações, em sua ampla maioria, de natureza individual, acarreta danos graves à eficiência do Poder Judiciário em razão da retroalimentação da litigiosidade e, por conseguinte, da morosidade processual.
Priscila Corrêa sustenta, ainda, que haveria uma lógica econômica perversa que justifica a conduta dos litigantes habituais, sejam eles agentes privados ou públicos, de insistirem na utilização do Poder Judiciário, retroalimentando a litigiosidade. Os agentes privados possuem, na visão da referida jurista, uma verdadeira estratégia baseada em um cálculo racional que demonstra que os custos desta opção são inferiores aos ganhos obtidos, o que é evidente, pois, se não houvesse proveito econômico não estariam gastando para manter milhares de litígios judiciais.
Vale dizer, é melhor para os grandes litigantes, sob a ótica financeira, manter sua postura e práticas adotadas extrajudicialmente do que adequá-las aos posicionamentos dos tribunais.
A situação é mais complexa em relação à análise da postura do Poder Público. Os motivos que o levam a adotar a postura de litigante habitual são ainda, de certa forma, paradoxais. Isso porque a retroalimentação abusiva dos litígios pelo Poder Público acarreta consumo desnecessário de recursos pelo Poder Judiciário, o que é prejudicial ao próprio Estado a quem compete destinar os recursos orçamentários de manutenção e funcionamento do Sistema de Justiça.
Não obstante o aumento dos gastos, o Poder Executivo não demonstra ter se incomodado com o desperdício de recursos públicos, mantendo sua postura reticente aos posicionamentos dos tribunais, contribuindo para o aumento crescente da litigiosidade. Essa situação levou Priscila Corrêa a considerar como motivação mais evidente para o uso patológico da Justiça a ânsia da utilização imediata dos recursos públicos por parte dos titulares dos mandatos políticos nos seus programas de governo. O uso do Poder Judiciário serviria, nesse contexto, como uma forma de postergação da saída dos recursos dos cofres públicos.
Assim, quanto mais moroso for o processo melhor será para o Poder Executivo. Há de ser considerado, ainda, o fato de que o Executivo enxerga o Poder Judiciário como se não fosse parte do poder estatal e não utilizasse recursos públicos para gerir o seu funcionamento.
No mesmo sentido é a crítica de Nelson Nery Jr:
A real efetividade do direito fundamental da CF 5º LXXVIII [a celeridade processual], pois, não depende apenas do Poder Judiciário e de seus juízes, mas principalmente dos Poderes Executivo e Legislativo e da mudança de mentalidade dos governantes e políticos, no sentido de cumprirem e fazerem cumprir a Constituição, evitando a judicialização das questões que os particulares têm de submeter ao Poder Judiciário por falha do poder público no exercício principalmente da função administrativa.
O pior é que a postura dos entes públicos – principais litigantes habituais – permanece sem sanções efetivas ou medidas legislativas coerentes que pudessem mitigá-la. E o Ministério Público, instituição constitucionalmente incumbida de defender a ordem jurídica e o regime democrático, assiste indiferente à essa agressão do Estado de Direito.
A título de exemplo, o CPC/2015, ao dispor sobre a fixação de multa por reiteração de recurso de embargos de declaração protelatórios (§3º do art. 1.026) ou de agravo interno manifestamente inadmissível ou improcedente (§§ 4º e 5º do art. 1021), permitiu que a Fazenda Pública – litigante habitual – fizesse o pagamento ao final do processo, permitindo-se a utilização de artifícios para atrasar o andamento processual.
É ainda mais evidente a fragilidade da novel legislação para coibir a litigância abusiva do Poder Público quando se depara com a ausência de eficácia vinculante erga omnes do sistema de precedentes criado pelo CPC/2015 de observância obrigatória apenas no âmbito do Poder Judiciário.
O CPC/2015 instituiu um sistema de precedentes para conferir maior uniformidade, coerência, estabilidade e previsibilidade à jurisprudência. O seu art. 927 dispõe que os juízes e tribunais deverão observar nos julgados as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, os enunciados de súmulas vinculantes, das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, os acórdãos proferidos em incidentes de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e de julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos e, por fim, a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Não vai restar uma matéria para ser decidida pelo juiz, qualquer colegiado de qualquer instância proferirá decisões vinculantes. Apenas as súmulas vinculantes e o julgamento do controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal deveriam vincular o magistrado. A fonte normativa desse efeito vinculante é a própria Constituição que estabelece, expressa e taxativamente, as hipóteses extraordinariamente vinculantes, com eficácia erga omnes, inclusive para a Administração Pública. As demais hipóteses da norma acima referida adquiriram eficácia vinculante por lei ordinária restrita apenas ao âmbito da estrutura hierárquica do Poder Judiciário, o que é inconstitucional. A temática, no entanto, é controversa, merecendo um estudo a parte.
O que merece ser destacado para a pertinência da crítica ora apresentada é que o legislador ordinário não previu a eficácia vinculante dos referidos precedentes para o Poder Público, que, portanto, poderá continuar incentivando a litigiosidade a despeito de eventual posição pacificada no âmbito do Poder Judiciário. A litigiosidade habitual abusiva, a toda evidência, não foi combatida pela legislação.
De maneira muito tímida e insuficiente, o inciso IV, do art. 1.040 do CPC/2015 previu, para os casos de recursos especial e extraordinário repetitivos que versarem sobre questão relativa a prestação de serviço público objeto de concessão, permissão ou autorização, que o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada. A norma foi reproduzida no § 2º do art. 985 para o julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas.
Ou seja, a eficácia vinculante seria restrita aos particulares delegatários do serviço público que, embora também se enquadrem como litigantes habituais nas estatísticas do CNJ, não respondem pela maioria das ações em tramitação.
É incompreensível a razão de não se conferir a mesma eficácia vinculativa para os entes públicos, constitucionalmente atrelados ao princípio da legalidade e demais litigantes habituais nas hipóteses de julgamentos de casos repetitivos ou de enunciados de súmula do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Interessa ao Poder Público modificar suas práticas administrativas em razão de precedentes judiciais?
Luiz Guilherme Marinoni aponta, de forma crítica, que o excesso de processos e a morosidade da função jurisdicional são, por vezes, opção dos próprios detentores do poder. Segundo o referido processualista,
(…) sabe-se que o próprio Estado, a quem cabe observar o princípio da eficiência da função jurisdicional (art. 37, caput, CR/88), não tem interesse em cumprir referido princípio e se vale da morosidade do Judiciário como expediente, sua marca registrada. A demora da jurisdição funciona como um obstáculo ao exercício, pelo cidadão, do direito constitucional de “acesso à jurisdição” e o Estado, contando com isso e mais preocupado em arrecadar e atender os compromissos econômico-financeiros internacionais, posterga o adimplemento de suas obrigações constitucionais. Nesse sentido é que se coloca a “lentidão” do Judiciário como uma opção, não daqueles que detém o poder, porque o poder é do povo e ao povo não interessa o mau funcionamento do serviço público jurisdicional, mas da figura estatal, que amiúde se beneficia dessa situação.
Mesmo depois de todo o arcabouço legislativo e dos Pactos Republicanos firmados pela celeridade do Sistema de Justiça, o direito processual individual ou coletivo ainda não possui tratamento adequado e eficiente para coibir a atuação abusiva dos chamados litigantes habituais, que, não raras vezes, conforme mencionado, utilizam de forma patológica e abusiva o Poder Judiciário, permitindo a pulverização de demandas de idêntica natureza mesmo diante de posicionamentos contrários já firmados pelos tribunais.
Ou seja, o CPC/2015 e as demais reformas legislativas não são suficientes para superar a complexa crise de morosidade que assola a justiça em proporções universais. O combate às graves deficiências da prestação jurisdicional há de ser travado no plano político-administrativo, que transcende a regulamentação legislativa e envolve a organização e gerenciamento dos serviços judiciários. Nesse terreno, entretanto, é completamente inócua a obra de renovação das leis processuais.
7. CONCLUSÃO
O objetivo do presente artigo foi instigar o debate sobre a crise persistente do Poder Judiciário, alertando, inclusive mediante análise de dados estatísticos e dos relatórios da “Justiça em Números” do Conselho Nacional de Justiça, que as modificações da legislação processual imbuídas do intuito de conferir maior celeridade à prestação jurisdicional não constituíram, ao longo da história, remédio adequado à solução dos problemas vivenciados pelo Sistema de Justiça no Brasil.
Os números apresentados demonstraram, por exemplo, que a técnica de pinçamento de recursos para julgamento de questões repetitivas (como é o caso do recurso especial representativo de controvérsia e do recurso extraordinário com repercussão geral) não acarretou a diminuição de processos nas Cortes Superiores. Ao contrário, os dados destacados demonstraram o enorme congestionamento dos tribunais superiores responsáveis pela definição das teses jurídicas.
Ou seja, as ondas de reformas processuais, principalmente após a Constituição de 1988, e os Pactos Republicanos por uma Justiça mais célere não trouxeram reflexos concretos para a celeridade e melhoria da qualidade da prestação jurisdicional e, principalmente, não contribuíram para a efetiva diminuição da litigiosidade de massa, em que pese terem representado profunda modificação no direito processual, inclusive com a promulgação da recente Lei 13.105, de 16 de março de 2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil.
O enorme arcabouço legislativo visa apenas passar à sociedade a falsa impressão de que as medidas já foram tomadas pelos entes competentes e de que os problemas serão resolvidos.
É certo, porém, que, antes mesmo do CPC/2015, o Brasil já poderia orgulhar-se de ter uma das mais completas e avançadas legislações em matéria processual civil, inclusive de proteção de interesses supra individuais, de modo que, se ainda é insatisfatória e morosa a tutela dos direitos dos cidadãos, certamente não é a carência de instrumentos processuais que responde por isso.
É de se ver que o Poder Judiciário e as recentes alterações legislativas trabalham apenas com as consequências do não cumprimento dos direitos, mas dificilmente com as causas, para as quais, em grande medida, haveria a necessidade de políticas públicas mais idôneas promovidas pelo Poder Executivo, em todas as suas esferas na federação, além de medidas concretas e efetivas para prevenir o uso patológico do Sistema de Justiça.
Nessa toada, não é possível falar-se em diminuição da litigiosidade e em celeridade da prestação jurisdicional sem que se resolva, com prioridade, o problema gravíssimo da litigância habitual patológica no Brasil.
Os números confirmam, e isso se repetirá ao longo dos anos, que um enorme percentual dos processos em tramitação possui como parte processual alguns poucos sujeitos, entre os quais se destacam os entes públicos, as instituições financeiras e as pessoas privadas prestadoras de serviços públicos.
A figura do litigante habitual adquire em razão disso enorme relevância para o diagnóstico e o combate à litigiosidade repetitiva. Não se vislumbra, contudo, conforme se destacou, uma maior preocupação com a atuação abusiva do referido agente, que permite a pulverização de demandas de idêntica natureza mesmo diante de posicionamentos contrários já firmados pelos tribunais.
As evidências demonstram que é melhor para os grandes litigantes, sob a ótica financeira, manter sua postura e práticas adotadas extrajudicialmente do que adequá-las aos posicionamentos dos tribunais. Haveria por trás uma lógica econômica perversa que justificaria a conduta dos litigantes habituais, sejam eles agentes privados ou públicos, de insistirem na utilização do Poder Judiciário, retroalimentando a litigiosidade.
As novas legislações e técnicas de julgamentos com a edição de precedentes, inspiradas inclusive no common law, não combatem diretamente a litigância habitual patológica no Brasil. As medidas de punição são tímidas e praticamente inoperantes, sobretudo em relação aos entes públicos considerados os maiores litigantes.
Assim, mais do que a publicação de novas leis e a criação de novas técnicas de julgamento seria necessário estabelecer um diálogo institucional aberto e constante entre o Poder Judiciário e os demais poderes da Republica para se modificar a cultura do litígio, de maneira que principalmente o Poder Público – considerado o maior litigante – comece a adotar uma postura coerente com a intenção manifestada de melhoria do Sistema de Justiça. Uma postura de respeito aos posicionamentos firmados pela Justiça, alterando-se as práticas administrativas consideradas ilegais não só em favor daqueles que obtiveram êxito no processo, mas também em favor de todos os administrados na mesma situação, o que, de fato, reduziria a litigiosidade.
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Por: Daniel Carneiro Machado
Juiz Federal da 21ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais. Doutor em Direito Processual pela UFMG (2016) e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas (2004). Professor titular do curso de graduação em direito do Centro Universitário Newton Paiva, em Belo Horizonte, além de professor de cursos de pós-graduação e preparação para concursos públicos na área jurídica. Ex-Advogado da União e ex-Procurador da Fazenda Nacional em Minas Gerais.
Fonte: https://jus.com.br/artigos/59960
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