Ana Carolina de Camargo Clève*
Com o advento da Constituição Federal de 1988, os partidos políticos assumiram posição de destaque na democracia representativa brasileira. É que, entre nós, os partidos passaram a figurar como engrenagens para o funcionamento – e organização – do sistema político adotado.
Note-se que, no Brasil, a centralidade institucional e legal dos partidos políticos é tão evidente que a filiação partidária e a prévia escolha em convenção partidária são requisitos típicos de elegibilidade – ao contrário de outras democracias, onde ou se tolera a candidatura avulsa ou a filiação partidária é mera opção do candidato para ter mais viabilidade eleitoral. Portanto, é de se concluir que a opção do constituinte de 1987/88 foi pelo desenvolvimento de um autêntico estado de partidos como meio de exercício do princípio democrático no seu viés representativo – consoante se pode verificar da interpretação sistemática dos artigos 14 a 17 da Constituição Federal.
Vale destacar que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), em algumas oportunidades, reconheceu a centralidade dos partidos políticos no sistema democrático representativo brasileiro. Convém fazer menção a dois casos.
No primeiro deles, ao julgar a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2530[1], o STF, por maioria, suspendeu a eficácia do art. 8º, § 1º da redação original da Lei n. 9.504/97 (Lei das Eleições) – que previa que os que já exercessem mandatos de Deputado Federal, Estadual, Distrital ou Vereador, teriam a vaga para a nova candidatura assegurada independentemente de se submeterem a convenções – por entender que esse dispositivo transgride o postulado constitucional da autonomia partidária. Na ocasião, o Ministro Celso de Mello, atual relator da ADI em comento, afirmou que “a normação constitucional dos partidos políticos tem por objetivo regular e disciplinar não só o processo de institucionalização desses corpos intermediários, como também assegurar o acesso dos cidadãos ao exercício do poder estatal, na medida em que pertence às agremiações partidárias – e somente a estas – o monopólio das candidaturas aos cargos eletivos” (grifos no original). Ou seja, ao suspender a eficácia da regra que previa a chamada “candidatura nata”, o STF reconheceu que, na democracia representativa brasileira, cabe aos partidos políticos o monopólio de legitimação e escolha dos candidatos que se submeterão ao pleito eleitoral. Veja-se, portanto, que esse precedente deixa evidente o protagonismo dos partidos políticos no Estado Constitucional.
No segundo caso, à luz da mesma racionalidade do precedente anterior, o STF reconheceu que os mandatos pertencem aos partidos – fenômeno da fidelidade partidária vinculativa do mandato – gerando uma regulamentação do Tribunal Superior Eleitoral (resolução n. 22.610/2007) que possibilitava aos partidos reivindicar os mandatos dos trânsfugas. Nessa ocasião, entendeu o STF que as hipóteses de perda de mandato por migração e desfiliação partidária voluntária não configuram sanção, mas, sim, decorrência lógica do regime jurídico da fidelidade partidária, pois se vive, no Brasil, uma “democracia partidária”. Neste ponto, vale mencionar que, em 2015, julgando a ADI 5.081[2], o STF pacificou que a perda do mandato em razão de mudança de partido não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário. De acordo com o Ministro Barroso, relator do da ADI, “a perda do mandato, em razão de mudança de partido por candidato eleito pelo sistema proporcional, decorre logicamente da Constituição para que se preserve a soberania popular e as escolhas feitas pelo eleitor”. Ora, as razões de decidir desse precedente, uma vez mais, evidenciam a força constitucional dos partidos políticos no desenho democrático brasileiro.
Note-se que, ainda que a fidelidade partidária vinculativa do mandato apenas se aplique ao sistema proporcional – consoante decidiu o STF -, uma vez que tanto este sistema como o majoritário exigem filiação partidária e escolha em convenção como requisito típico de elegibilidade, não é demasiado afirmar que, no Estado Constitucional brasileiro, a existência de partidos políticos fortes é condição para o desenvolvimento da democracia representativa.[3]
Uma vez estabelecido esse paradigma constitucional – dos partidos políticos como atores necessários à concretização da democracia em seu viés representativo -, como premissa que deve direcionar a organização do sistema político pátrio, é evidente que a implementação de reformas nos sistemas eleitorais proporcionais irá trazer reflexos para o sistema partidário; daí a importância de se abordar alguns aspectos importantes da reforma política frente à premissa aqui colocada.
No que é relevante para o presente, o primeiro ponto da reforma a merecer atenção refere-se à cláusula de barreira. Isso porque há um consenso nas discussões do Congresso Nacional e entre a quase totalidade dos estudiosos do tema: a interpretação do STF conferindo relevância extremada ao princípio da liberdade de criação e manutenção dos partidos políticos está superada. Ora, levando em consideração o protagonismo que a Constituição Federal de 1988 outorgou aos partidos políticos, é certo que esses atores – os partidos – apenas cumprirão de forma adequada sua missão constitucional se houver mecanismos que os tornem mais fortes e representativos da sociedade. Nesse sentido, defende-se a adoção das chamadas cláusulas de barreira – ou de desempenho – tanto para a fundação, quanto para a manutenção de partidos políticos. Essas cláusulas de barreira – que constitucionalmente devem estar condicionadas a medir representatividade, especificamente, com base na eleição de deputados federais (em face do caráter nacional dos partidos políticos) – devem exercer seus efeitos especialmente no acesso ao fundo partidário e ao exercício do direito de antena, que são os mecanismos que o poder público disponibiliza para a sustentação da atividade partidária. Além da cláusula de barreira, também já ressoa como consensual a proibição das coligações partidárias proporcionais. Tem-se, aqui, mais um ponto positivo da reforma no sentido de contribuir para o fortalecimento das agremiações partidárias.
A despeito de relevantes críticas de parcela significativa de estudiosos do direito eleitoral e da ciência política, pensa-se que a lista fechada – outra proposta para a reforma política –, além de ser consentânea com o sistema constitucional vigente, consiste em mais um mecanismo para o fortalecimento dos partidos políticos. Contudo, há que se ressalvar que, no que toca à lista fechada – modelo em que a opção do eleitor passa a ser votar nos partidos que, previamente, oferece uma lista pré-ordenada de candidatos ao parlamento respectivo -, é evidente que o sistema partidário deverá ser modificado no que diz respeito à democracia interna dos partidos políticos. É que, se aprovado esse sistema eleitoral, os mecanismos de controle e de participação interna dos filiados deverão ser reforçados, de modo a coibir o “mandonismo” e o “caciquismo”, inclusive no sentido de impedir o uso abusivo das comissões provisórias – que, na prática, eternizam-se e ficam como instrumentos de poder das instâncias superiores e parlamentares –, exigir a estabilização, por convenção aberta a todos os filiados, das direções partidárias regionais, municipais e zonais, meios de escolha interna dos candidatos de forma democrática e, sobretudo, restituir integralmente à Justiça Eleitoral a competência para a dirimir conflitos de interesse “interna corporis” dos partidos políticos.
Outro sistema cogitado é o chamado distrital misto – no qual uma parte dos votos dos parlamentares é obtida através do sistema majoritário e outra parte mediante o sistema proporcional – neste ponto, defende-se, como dito acima, que seja seguido o modelo da lista fechada com a observância das ressalvas acima expostas. De toda sorte, à luz do sistema constitucional brasileiro, como já antes dito, mesmo os candidatos que concorrerão na lista do distrito também devem ser escolhidos e lançados por partidos políticos, tendo em vista que, como não há proposta de alteração do art. 17 da CF, cabe às agremiações partidárias o monopólio das candidaturas, conforme, reitere-se – reconhecido pelo STF. Veja-se que, por esse sistema, é possível garantir, a um só tempo, o importante papel dos partidos políticos e a garantia da pluralidade de ideias e defesa de grupos subrepresentados e, também, resolve-se o problemas dos famosos “puxadores de votos”, aquelas personalidades que não dependem dos partidos para garantir seu capital político.
Por fim, caso adotado o denominado “distritão” – no qual cada estado ou município transformar-se-ia num distrito (eleições municipais e eleições estaduais/ nacionais) e os eleitos para os parlamentos seriam os mais votados, independente da votação dos partidos – ter-se-ia, em verdade, praticamente uma eleição majoritária dividida pelas cadeiras em disputa. Ocorre que esse tipo de sistema, quando submetido ao filtro de compatibilidade com a premissa aqui defendida – de que a democracia representativa brasileira apenas se perfaz por intermédio da atuação dos partidos -, logo se mostra inadequado para o desenho constitucional de 1988; até por isso, não sem razão algumas vozes já ecoam no sentido da inconstitucionalidade dessa proposta.
[1] STF, ADI (MC) 2530-9, Rel. Sydney Sanches, DJ 21.11.2003 [2] STF, ADI 5081, Rel. Min. Roberto Barroso, julg. 27.5.2015. [3] Ainda no contexto da fidelidade partidária, vale mencionar que a Lei n. 13.165/15 – conhecida como Lei da Minirreforma Eleitoral – alterou diversos dispositivos da legislação eleitoral, incluindo a Lei dos Partidos Políticos (9.096/95). Sobre o tema da fidelidade partidária, a inclusão do artigo 22-A, além de inaugurar nova hipótese de justa causa (inc. III), suprimiu duas hipóteses de justificação, previstas na Resolução/TSE 22.610, para fins de não decretação de perda do mandato pela Justiça Eleitoral em razão da transmigração partidária.Ana Carolina de Camargo Clève
Advogada inscrita na OAB/PR sob n.º 61917
Professora de Direito Constitucional e Eleitoral do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UNIBRASIL.
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar.
Presidente do Conselho Consultivo do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (IPRADE) e Secretária Adjunta da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).
Advogada com atuação em Direito Público
Fonte: novoeleitoral.com
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